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O tema do trabalho escravo no Brasil foi permeado de incertezas em 2017. No mesmo semestre, duas portarias foram divulgadas sobre o assunto com abordagens diametralmente distintas. A portaria 1.129/17, publicada no DOU em outubro do ano passado, estabelecia novas regras para a caracterização de trabalho análogo ao escravo e para atualização do Cadastro de Empregadores.
As novidades reverberaram no cenário internacional e foram criticadas por órgãos como a OIT, colocando em xeque um trabalho de vinte anos de combate à escravidão. A organização divulgou uma nota avaliando a gravidade das mudanças propostas.
Os desdobramentos desta norma também não foram positivos no cenário político nacional. A PGR Raquel Dodge chamou atenção para as violações constitucionais e recomendou a revogação da portaria. A Rede Sustentabilidade ajuizou no STF a ADPF 489, assim como a Confederação Nacional das Profissões Liberais (ADPF 491) e o PDT (ADIn 5.802), contra os efeitos desta portaria. As ações foram distribuídas para a relatoria da ministra Rosa Weber, que logo em seguida, deferiu liminar para suspendê-la. Esta liminar ainda precisa ser julgada pelo plenário do STF.
Em virtude da repercussão negativa, dois meses depois o governo editou uma nova portaria. Mais extensa que anterior, a portaria 1.293/17 veio com alterações dos conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e sobre as responsabilidades do auditor-fiscal do trabalho.
O que mudou?
As diferenças entre as portarias vão desde mudanças semânticas de tempos verbais até alterações sobre as responsabilidades dos órgãos envolvidos no combate ao trabalho escravo. Enquanto a primeira portaria concede o seguro-desemprego “ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo”, a norma publicada posteriormente vai direto: “ao trabalhador que for encontrado em condição análoga à de escravo”.
Na portaria que substituiu a anterior, também está descrito de forma mais extensa e específica itens como o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, vigilância ostensiva no local de trabalho e o apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Outro tópico que foi alvo de críticas na portaria 1.129/17 foram as burocracias relacionadas à documentação que o auditor-fiscal do trabalho deveria juntar para poder colocar o nome da empresa no Cadastro de Empregadores. Os documentos solicitados eram: cópias de todos os documentos que demonstrem e comprovem a convicção da ocorrência do trabalho forçado; fotos da situação degradante; descrição detalhada do objeto encontrado. Para que o processo fosse recebido pelo órgão julgador, auditor-fiscal ainda deveria juntar o relatório de fiscalização; o BO lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização e a comprovação de recebimento deste relatório pelo empregador autuado.
Em contrapartida, a norma 1.293/17 dá maior autonomia para que o fiscal interdite de forma imediata aquela situação. Está no 9º artigo “Constatada situação de grave e iminente risco à segurança e à saúde do trabalhador, deverá ser realizado, de forma imediata, o embargo ou a interdição e adotadas as demais medidas previstas em lei”.
Consta na portaria 1.129/17 o TAC, Termo de Ajustamento de Conduta, que é um acordo judicial com a empresa sujeita a constar no Cadastro de Empregadores. Este termo tem por objetivo a reparação dos danos causados, o saneamento das irregularidades e a adoção de medidas preventivas e promocionais para evitar a futura ocorrência de novos casos de trabalho em condições análogas à de escravo. O mesmo termo não aparece na portaria posterior.
No Brasil
Apesar do mau desempenho em 2017 no combate ao trabalho escravo, as leis e medidas brasileiras estão em consonância com as definições internacionais sobre o tema. Desde 1995, quando o Brasil reconheceu perante a comunidade internacional que ainda havia escravidão em seu território, uma série de medidas foram tomadas para enfrentar este problema humanitário.

Dentre essas medidas estiveram a criação dos chamados Grupos Móveis de Fiscalização; a implementação de um importante mecanismo de controle social, a chamada “Lista Suja”; a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e a aprovação da chamada “PEC do Trabalho Escravo”, que prevê a expropriação de propriedades urbanas ou rurais nas quais tenha sido constatada a prática de trabalho escravo.
Outra mudança significativa que o país adotou foi a introdução de um conceito moderno de trabalho escravo, que envolve não só a restrição de liberdade e a servidão por dívidas, mas também outras violações da dignidade da pessoa humana. Nestes mais de 20 anos contra o trabalho escravo, o país avançou a passos largos em comparação com outros países.

Na visão da ONU, erradicar o trabalho escravo exige uma ação coordenada de todos os países para adotar medidas eficientes. No Brasil, por exemplo, a ONG Repórter Brasil criou o app Moda Livre, que cataloga e classifica as marcas de roupa que combatem o trabalho escravo. Segundo o app, 54 varejistas têm a pior avaliação, não demonstrando ter mecanismos de acompanhamento e já demonstrando histórico desfavorável em relação ao tema. O aplicativo está disponível na Apple Store.