Notícias ao Minuto
Elza Soares, 87, desliza pelas redes sociais em seu smartphone. Passa por um vídeo de Nina Simone e por uma foto na qual um homem branco senta sobre um negro. Ela procurava trechos de um documentário sobre mulheres que sofrem violência no campo. “Até chorei, é difícil se recompor”, diz enquanto mostra cenas à reportagem.
A cantora diz estudar com afinco os temas que vocaliza. O calvário e a força das mulheres já haviam sido o alicerce para seu trabalho mais recente, o aclamado “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, e ressurgem em “Deus é Mulher”, que Elza lança nesta sexta (18).
O título é um verso da faixa “Deus Há de Ser”, composta por Pedro Luís, que arremata a seleção de 11 inéditas do álbum. Filha de uma lavadeira e de um operário, Elza lembra a infância em uma favela carioca e afirma: “Deus tem de ser mulher e mãe”.
“Me assustava muito a vida de Cristo, aquele homem coitado, carregando aquela imensidão de gente, pedindo misericórdia, se arrastando. Me via quase como isso, me arrastando, carregando água, parindo filho quando menina, naquela pobreza, vendo minha mãe sofrendo com as trouxas de roupa na cabeça, negra, subindo ladeiras com latas.”
Ao contrário do álbum anterior, que chegou estruturado à cantora, neste ela atuou mais desde a concepção; Elza escolheu o repertório entre 60 faixas selecionadas pelo instrumentista e produtor Guilherme Kastrup.
O resultado será apresentado ao vivo nos dias 31 de maio, 1º, 2 e 3 de junho no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. A venda online de ingressos começa no dia 22 de maio, às 18h. “‘A Mulher do Fim do Mundo’ é muito forte, bonito, mas muito fechado, pesado, uma coisa dark. ‘Deus é Mulher’ vem mais aberto, mais solar, a gente precisa disso”, diz.
É por isso também que ela tem feito aparições de branco, como na sessão de fotos dessa reportagem, quando se esforçou para ficar de pé, apesar da mobilidade tolhida pelas três cirurgias na coluna depois que caiu do palco do Metropolitan, em 1999. O novo álbum também conta com mais mulheres nos bastidores, como instrumentistas ou como compositoras.
Contribuem para o álbum, por exemplo, a percussionista Mariá Portugal, a clarinetista Maria Beraldo e o grupo Ilú Obá de Min, responsável por percussão e vozes de “Dentro de Cada Um” e “Banho”, composição de Tulipa Ruiz.
O álbum aborda também temas que a cantora considera estarem sendo calados. Em “Exu nas Escolas”, de Kiko Dinucci e Edgar, Elza defende o ensino da cultura afrobrasileira nas salas de aula e menciona o esquema de fraudes envolvendo merendas escolares. Em “O Que se Cala”, a cantora clama pelo direito de se manifestar (“minha voz uso para dizer o que se cala/ o meu país é o meu lugar de fala”).
“Tive minha casa metralhada, fui expulsa, não quero mais sair daqui. Tenho receio, temos que ter cuidado para que não aconteça outra vez. É se libertando, gritando, falando. Você está no seu país, na sua terra, no seu chão”, diz, em alusão ao exílio com o marido Garrincha na Europa.
A história, que ela vê como uma lição de vida, será lembrados em musical e em livro neste ano. “É a dificuldade da negritude nesse país. Não acredito que tenha passado por tudo isso para chegar aqui e ser essa mulher que grita.”
Se nas canções vai direto ao ponto, em questões políticas ela evita fazer críticas específicas. “Falar o quê? Dessa repressão, desse movimento, dessa coisa que ninguém sabe o caminho? É uma encruzilhada. Fecharam as porteiras.”
Diz aguardar, mas não em silêncio. “Não me calo nunca e me arrependerei jamais. Me calar como? Sou a cara dessa nação, sou a cara desse país, por que vou me calar? Não tenho culpa de ter nascido aqui.”